Outras Palavras - Para diretor de instituto internacional do idioma, globalização é multilíngue. Português avança, mas não será língua única de país algum
A notícia passou quase despercebida, numa mídia pouco atenta aos grandes temas contemporâneos. Um estudo da Semiocast – uma consultoria francesa, especializada em pesquisa e inteligência de dados – revelou que o português já era, em fevereiro de 2010, a terceira língua mais “falada” no twitter. Usado em 9% das micropostagens, estava atrás apenas inglês e japonês. A investigação destacou, além disso, que a língua de Shakespeare perdia terreno rapidamente. Havia caído para 50% dos tuítes globais – ainda muito, mas bem abaixo dos 66% que representara, apenas um ano antes. Idiomas pouco conhecidos no ocidente – entre eles, o malaio (6%), árabe, hebreu, islandês, persa, swahili, nepalês e pashtum – compareciam, cada um, com mais de 2%.
Ao menos duas conclusões emergem destes resultados. A ideia de que a globalização conduziria a uma homogenização empobrecedora das línguas, e à imposição progressiva do inglês, não parece se confirmar na prática. As novas comunicações em rede vão se desenvolvendo na forma de uma galáxia multilíngue, na qual o português – impulsionado certamente pela forte presença do Brasil nas redes sociais – parece ter importância real.
O linguista brasileiro Gilvan Müller de Oliveira está convencido de que as relações entre os idiomas expressam sempre poder; e que, portanto, a garantia da diversidade linguística, é uma conquista democratizante, pela qual é preciso lutar de modo permanente. Gilvan é, desde outubro de 2010, diretor-executivo da organização encarregada de estimular a difusão global do português, e de gerir seu desenvolvimento. Trata-se do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), criado em 2002, pela Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), sediado em Cabo Verde, é pouco conhecido no Brasil, embora muito atuante.
A partir do impulso de Gilvan, o IILP (vale conhecer também seu blog) tem adotado uma estratégia de expansão global do idioma audaciosa e refinada. Age para fortalecê-lo em regiões como a Galícia (no Estado espanhol), cuja língua, o galego, é muito semelhante à nossa. Busca resgatá-lo mesmo em países onde é empregado por pequenas comunidades – por exemplo, a Guiné Equatorial, onde os idiomas oficiais são espanhol e francês, mas há um idioma crioulo com traços de português. Estabelece laços com comunidades importantes que falam a língua em países onde poucos suspeitariam – a Ucrânia, por exemplo.
Mas, coerente com a defesa da diversidade, o IILP destoa de velhas concepções, favoráveis à suposta “pureza” da língua. Gilvan, que atuou anos defendendo os idiomas dos autóctones brasileiros contra a homogenização imposta pela português, orgulha-se das 3500 escolas bilíngues hoje instaladas no país, frequentadas por 200 mil índios. Posiciona-se a favor do ensino das línguas crioulas nas nações africanas onde o português era, até há pouco, o idioma único nas escolas. Condena as políticas que desestimularam, no passado, o uso do italiano, alemão ou polonês por comunidades de imigrantes no Brasil – para não falar na repressão à “língua geral”, predominante em várias regiões até o século 18 e hoje extinta, depois de longa e tenaz repressão – que chama de “dilapidação do patrimônio linguístico. Lembra que somos ainda, apesar disso, um país de cerca de 210 idiomas [ver seu artigo a respeito], e é preciso valorizá-las.
A entrevista a seguir registra seus pontos de vista e planos de ação no IILP. Ela própria é, aliás, expressão das colaboração linguística e cultural que pode haver no interior da CPLP. Adaptada por Outras Palavras, foi produzida em Cabo Verde, por Kriolidadi, um suplemento do jornal A Semana.
Qual é o papel do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP)?
Gilvan Müller de Oliveira: O instituto é uma iniciativa inovadora e supranacional de gestão do português. Sediado em Praia (Cabo Verde), representa de forma paritária e comunitária as oito nações da Comunidade de Países da Língua Portuguesa (CPLP) – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Todos financiam, participam e têm direito aos benefícios da promoção e difusão da língua portuguesa. Através do Instituto, a língua portuguesa deixa de ser gerida só na sua base tradicional – Brasil e Portugal – e promove um contato mais estreito entre os países lusófonos, cada um gerindo sua pluralidade interna, mas podendo dialogar num quadro mais amplo.
Esta visão plural permitirá promover, em setembro, o Colóquio de Maputo, quando discutiremos a diversidade linguística na CPLP. Vamos debater experiências como as do Instituto de Linguística do Timor-Leste – que é responsável pela norma do tétum; do Instituto Angolano de Línguas Nacionais – que começa a fazer o trabalho de mapeamento das línguas nacionais (kikongo, kimbundu). Acompanhamos a criação da Licenciatura Intercultural Bilíngue da Universidade Federal do Amazonas, no Alto Rio Negro. Ou a recente oficialização do mirandês, já aprovado pelo Parlamento Português. E, em Cabo Verde, as discussões para a oficialização e reconhecimento da língua crioula.
Como será esse novo modelo que quer reorganizar a lusofonia no mundo?
Gilvan Müller de Oliveira: Queremos gerar e provocar novos contatos. Colocar em diálogo centros de produção de saberes linguísticos que nunca antes tinham entrado em contacto e que veiculam a língua e cultura dos países da CPLP.
De que forma?
Gilvan Müller de Oliveira: Por exemplo: em breve, vamos organizar a primeira videoconferência de rádios comunitárias de língua portuguesa, que podem ser um imenso veículo de promoção do português. Se temos em conta que essas rádios comunitárias quase nunca tiveram oportunidade de se encontrar, estamos abrindo a via para projetos concretos de atuação e gestão da língua.
Por que Cabo Verde foi escolhido para sediar o Instituto?
Gilvan Müller de Oliveira: Por sua situação geográfica e também linguística – no Atlântico, entre a América, a Europa e a África – Cabo Verde é símbolo de que a língua portuguesa não é só do país onde ela nasceu, Portugal, nem dominada pelo país com o maior número de falantes, o Brasil. Situa-se a meio caminho de várias rotas, e com uma perspectiva promissora em termos de gestão da língua, na medida em que as negociações para oficialização do crioulo avançam, e o processo de transformação do português em um idioma de circulação internacional vai-se consagrando pelo aumento constante da escolaridade da população. Poderá ser um modelo para os países da CPLP em África que também são países plurilíngues.
Quais são as perspectivas do IILP para os próximos anos?
Gilvan Müller de Oliveira: Em março de 2010, os Estados-membros da CPLP realizaram, pela primeira vez, uma conferência sobre o futuro do português. O encontro delegou ao IILP tarefas concretas, relacionadas a quatro pontos: a língua portuguesa nas organizações internacionais; a diversidade linguística na CPLP; a Língua Portuguesa na Diáspora; e a Língua portuguesa na Internet. Decidimos realizar quatro colóquios, em quatro países diferentes. Cada colóquio vai se debruçar sobre as linhas de ação específicas. O IILP deverá ser, entre 2012 e 2014, um instituto de execução de projetos, de organização do campo linguístico e do estabelecimento das redes nesta grande comunidade.
O que acha da proposta do mestre em linguística, João Rosa, que recentemente defendeu o ensino do crioulo nas salas de aulas de Cabo Verde até o terceiro ano escolar?
Gilvan Müller de Oliveira: É sempre saudável realizarmos políticas que reconheçam a realidade. O crioulo é a língua de Cabo Verde, um país que está buscando uma forma de gestão do seu bilinguismo identitário, instituinte.
O que se sabe já, de outras experiências, é que é sempre melhor para as crianças que aprendam a sua língua materna. Não se trata de um truísmo, é um conhecimento bem estabelecido. Assim como tem acontecido em outros países da CPLP, caso de Timor; de Moçambique com suas escolas bilingues; do Brasil com suas 3.500 escolas bilíngues indígenas que têm 200 mil alunos, para não citar outros países.
É importante que Cabo Verde, a médio prazo, possa ter a língua cabo-verdiana como língua de instrução, paralelamente ao português, porque isso vai permitir, em primeiro lugar, que as pessoas separem os dois sistemas linguísticos de uma maneira mais clara. Vai permitir ainda a produção de conhecimento em língua cabo-verdiana – que é importante para a cidadania. Não acredito, como tenho escutado, que esta possibilidade seja uma ameaça para o português em Cabo Verde. O português está num momento de crescimento internacional, e tem-se tornado lentamente uma língua de oportunidades.
A Unesco lançou, há algum tempo, um programa de incentivo ao plurilinguismo chamado “The Language Matters”. Por que pedir atenção para este tipo de assunto?
Gilvan Müller de Oliveira: Estamos entrando numa era chamada por muitos de sociedade do conhecimento, na qual os modos de produção são redes comunicantes que precisam de informação atualíssima. E a língua é o principal instrumento. Há uma necessidade de instrumentos multicanal cada vez mais plurilingues: uma explosão das oportunidades de uso e expansão para muitas línguas. É o contrário do que se previa nos anos de 1990, quando se falava do domínio do inglês pela sua presença maciça no mundo, e do desaparecimento de outras línguas.
Que oportunidades são essas?
Gilvan Müller de Oliveira: A Wikipédia existe em 248 línguas, e a tendência é que isso continue a crescer. O Google já busca em 128 idiomas – hindi, polaco, quéchua. Para que estes programas e sites estejam disponíveis na internet, é necessária toda uma tarefa de retaguarda de terminólogos, gramáticos, lexicógrafos que poucos sabem que existe. Quando uma língua entra no meio digital, aquilo é só a ponta do iceberg de um trabalho imenso, que foi feito e consolidado por baixo.
Qual a importância disto?
Gilvan Müller de Oliveira: As oportunidades para que as pessoas possam viver na sua língua estão crescendo. Estamos nos encaminhando para soluções plurilíngues, quando antes nós só enxergávamos soluções monolíngues. Aquela ideia do século XIX, de Estados autarcas e fortes, de uma soberania encerrada numa única língua, na tentativa de controlar corações e mentes, ficou obsoleta e fadada ao passado. No entanto, ter o direito e oportunidade de viver na sua língua, não implica que você não possa aderir a outras línguas, ao mesmo tempo. Acaba, então, aquela dicotomia “ou eu falo a minha língua materna ou eu falo uma segunda língua”.
Estamos passando por um momento positivo de plurilinguismo. Preconizado pela Unesco desde pelo menos 1958, ele vai se concretizando numa série de instrumentos linguísticos como a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, de Barcelona em 1996, a Declaração Universal da Diversidade Cultural, de 2007.
“Ter direito de liberdade de expressão não é só
dizer o que eu penso – é poder dizer isso na minha língua,
e não apenas na língua hegemônica”
É a descoberta econômica da língua?
Gilvan Müller de Oliveira: Também: a percepção do erro que foi os Estados terem delapidado seu patrimônio linguístico, oprimindo grupos minoritários que falavam línguas que hoje poderiam significar a conexão com comunidades de outras nações, e gerar intercâmbio econômico. No entanto, além da dimensão econômica, há o direito linguístico enquanto locus do direito humano. Ter direito de liberdade de expressão não é só dizer o que eu penso – é ter direito de dizer isso na minha língua, e não apenas na língua hegemônica. Em terceiro lugar, é a revelação da língua como instrumento essencial de manutenção da diversidade de tradições e conhecimentos produzidos pela humanidade. Precisamos evitar que eles se percam, como ocorreu durante o longo período em que a tradição ocidental foi imposta como única forma legítima, expressa nas línguas europeias. Foi o que poderíamos chamar de função linguística do colonialismo.
A manutenção destas línguas e tradições de conhecimento implica reconhecer uma estrutura ecológica de saberes da qual necessitamos para sobreviver. É o oposto de crer que só a tradição ocidental é legítima, estando autorizada a destruir outras tradições, a considerar superstição todo um rol de conhecimentos, taxados com adjetivos negativos em nome da cientificidade declarada universal.
É preciso gerir melhor a política linguística no mundo?
Gilvan Müller de Oliveira: Nosso trabalho envolve explicitar as políticas linguísticas. Exige superar uma visão ingênua, que vê a língua como instrumento da natureza, monumento nacional, ou algo que se deu por si mesmo, que nasceu como nasce um baobá, que cresceu e engordou como se fosse um animal, uma planta. A língua, ao contrário, é a mais evidente criação do ser humano, e como todo o produto cultural ela sofre intervenções políticas todo o tempo – mesmo que o grosso da população nunca saiba que decisões foram estas. Portanto, tornar visível a questão política das línguas e sua gestão é meta de qualquer Estado democrático e qualquer instância internacional.
Que representa a entrada na CPLP da Guiné-Equatorial, único país africano de língua espanhola?
Gilvan Müller de Oliveira: A Guiné-Equatorial requisitou seu ingresso na CPLP como membro pleno, o que é uma novidade muito grande. É um país que dá passos para redefinir sua identidade linguística nacional, a partir da oficialização do francês e do português, em função dos seus interesses regionais e das suas possibilidades econômicas e diplomáticas. A Guiné-Equatorial está integrada na CEAC (Comunidade Econômica da África Central), que também tem o francês e o português como línguas oficiais, a partir da presença do Gabão e São Tomé e Príncipe.
É um sinal de que a língua não é uma fatalidade, é uma decisão política. A entrada de Guiné-Equatorial implicará uma série de medidas, que definirão qual será a presença do português naquele país: em que instâncias afetará a população, se entrará como língua de trabalho em determinadas áreas. Tal como a Guiné-Equatorial, há muitos outros países que hoje gostariam de entrar na CPLP. É um bom sinal, um bom augúrio para o bloco. Ninguém quer entrar num clube que não funciona, mas quando as coisas começam a melhorar as pessoas passam a querer aderir.
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A ideia do século XIX: Estados autarcas e fortes,
soberania encerrada numa única língua,
na tentativa de controlar corações e mentes, ficou obsoleta”
Quais são as exigências da CLPL para a entrada da Guiné-Equatorial?
Gilvan Müller de Oliveira: O primeiro passo foi elaborar um mini-plano que dará origem às estratégias de implementação do português no período 2011-2012. Implica definir o que se entende por oficialização do português: a oferta no setor público, na comunicação, no ensino superior. Por si só, a oficialização ainda não quer dizer nada. O português, por exemplo, apesar de ser oficial em Timor Leste, tem usos específicos. Este ano foi a primeira vez que houve uma sessão parlamentar em português lá.
Uma segunda ação é entender como a população sente a língua: Tem uma visão positiva? É vista como uma língua de opressão ou de abertura para o mundo? Existem setores que rechaçam o português? Em terceiro lugar, serão criados dois centros para o ensino do português: um na capital, Malabo, outro em Bata, principal cidade da Guiné-Equatorial continental. Quarto: haverá um programa de português na rede pública de televisão por semana, sem legenda nem dublagem. Quinto: será feito um estudo do crioulo de Annobón (o IILP vai movimentar uma equipe para isso), para caracterizar esta herança portuguesa a partir da existência do crioulo, da família dos crioulos do Golfo da Guiné, junto com o santomé, o lingué e o angolar, todos de São Tomé e Príncipe.
Qual a situação do português nas organizações internacionais?
Gilvan Müller de Oliveira: É importante que o idioma esteja presente nas organizações diplomáticas, como a ONU. Mas o mais importante, a meu ver, é o crescimento do português nos blocos econômicos regionais. Porque eles – e o Mercosul é um belíssimo exemplo – envolvem toda a sociedade, não só o corpo diplomático. Envolvem mobilidade física, parcerias de produção, conhecimento de títulos de formação, ações conjuntas. Vivificam a convivência entre comunidades linguísticas. E o português é língua oficial em cinco blocos, dos 17 existentes no mundo: União Europeia, Mercosul, Cedeao, CEAC, SADC e futuramente pode ser ainda língua oficial da Asean, quando Timor deixar de ser observador e se tornar membro pleno.
Você falou de “países-observadores” da CPLP. Qual é a situação do Senegal, Ilhas Maurício, Ucrânia que já sinalizaram o interesse em ter o português no seu território?
Gilvan Müller de Oliveira: Friso que também a Galícia, região autônoma da Espanha, faz um movimento em direção à CPLP, porque uma das polêmicas que vive é que o galego é português.
O Senegal tem uma área tradicional falante do crioulo da Guiné-Bissau, que é Ziguinchor, capital da província de Casamance, um antigo território português que foi trocado por Cabinda, em Angola, no final do século XIX.
Recentemente, saiu a biografia do ex-presidente de Moçambique, Joaquim Chissano, e ele diz: “o colonialismo português na África em muitos momentos foi pior que o apartheid para os africanos”. Isso é interessante porque apesar de tudo o que o português significou para o continente, existe uma sintonia e vontade de aproximação destes países (no âmbito dos blocos linguísticos e políticos), tanto por parte da elite quanto das classes populares. Existe uma vontade de pertença, que na minha opinião é um fator positivo e deveria ser investigado.
Isto traduz o novo modelo de lusofonia, que quer promover a adição de culturas e tradições a partir da língua – ao contrário do cenário antigo, que subtraía valores?
Gilvan Müller de Oliveira: Exatamente. Por que a Ucrânia teria interesse em ser membro da CPLP? Para além dos 400 mil ucranianos que vivem no estado do Paraná, no Brasil? Porque parece que no tempo da União Soviética cada república era especializada numa relação internacional, e a relação da URSS com os países de língua originária do português era prerrogativa da Ucrânia. Então estabeleceu-se lá um vínculo de 1975, um elo que permitiu a muita gente aprender o português. Muitos cidadãos foram para a África, e eles não querem desperdiçar este capital humano, linguístico e cultural que foi acumulado. Como o Brasil desperdiçou o capital da migração alemã, italiana, da língua guarani falada na Bolívia, Paraguai, Argentina. O Brasil, de certo modo, jogou no lixo oportunidades abertas pelo contato com estas outras comunidades. Trata-se de aproveitar o português nesta conjunção. Tornar a língua mais atraente, passível de paridade e negociação. Talvez seja uma novidade do século XXI.
De: Diário Liberdade